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Os atabaques nos cultos de Candomblé “conversam o tempo inteiro”. Cada toque conta uma história. Durante o xirê (a festa dos orixás), o tocador dos tambores sagrados precisa conhecer o toque adequado para cada entidade. Há toques para expressar alegria, tristeza, cansaço, harmonia, suavidade, sensualidade, guerra, etc.
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Nos terreiros de Ketu, por exemplo, um dos toques característicos de Ogum é o adarrum, que se caracteriza por sua rapidez agressiva e pelo ritmo contínuo, e evidencia o caráter marcial deste orixá. O agueré, consagrado a Oxóssi, mistura cadência e agilidade e evoca a astúcia do caçador que conhece a floresta como ninguém. O ilú de Iansã é muito rápido e repicado, representando a agitação da senhora dos ventos, dos raios e das tempestades. O igbin, toque para Oxalufã, traz a lentidão do caramujo que carrega sua própria casa, como Oxalufã carrega nas costas o peso do mundo.
Quem não percebe que existe aí, nesse idioma dos tambores, um manancial educativo vigoroso de capacitação para interpretar a vida? O tambor também é livro e o aguidavi — a vareta que percute o couro — é caneta poderosa para contar as aventuras do mundo. Eles educaram mais gente do que os nossos olhares, acostumados apenas aos saberes que se cristalizaram formalmente nos bancos acadêmicos, imaginam. Saibamos reconhecer, aprender e ensinar suas falas
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Em um momento em que o Brasil dá a impressão de se desmanchar num mar de ódio, pode parecer maluquice falar sobre tambor. Não acho. Tocar tambor, macerar plantas que curam, benzer quebranto, intuir as chuvas, lembrar dos mortos, ler os livros, temperar o feijão são formas de construir sociabilidades mundanas capazes de dar sentido à vida, reverenciar o tempo e instaurar a humanidade no meio da furiosa desumanização que nos assola.